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  • Foto do escritorIsadora Beagle

Amanda, ou, porque eu não me escondi para lanchar

Atualizado: 7 de abr. de 2020



Bom, estamos em uma festa. Você já deu 3 olhadas atentas na minha direção desde que eu sentei perto da mesa... E todas elas depois que eu tirei a marmita da mochila. A primeira vez foi sem querer, afinal de contas alguém tirando um trambolho da bolsa não é muito comum.


Para minha (não) surpresa, sua curiosidade não te permitiu deixar pra lá e você olhou mais uma vez, agora focando no conteúdo do pote. Eu sei que meu pão não parece muito um pão, ou que ninguém come carne a essa hora, ou que frutas cortadas parecem merenda de criança... E pelo jeito você, agora, sabe disso também. A terceira olhada já foi mais expressiva, alternando o olhar para a mesa e conferindo que havia ali em cima todo tipo de opções deliciosas e apropriadas. E ai, é claro, você veio na minha direção.

- Nossa que fitness!

Respiro fundo e forço uma expressão simpática. Universo, dai-me forças que hoje eu não to afim.

- Hahaha imagina, se eu pudesse tava atacando essa mesa. - É importante demonstrar que eu desejo açúcar, leite e farinha como todo mundo. Assim eu evito de ofender você com o meu auto-controle.

- Mas é pra perder peso?? Aquelas dietas Keto né?

Eu olho em volta e me pergunto por que eu não me escondi pra lanchar. É difícil ter que se isolar toda vez que bate a fome, mas hoje eu só queria comer em paz e falar sobre qualquer outra coisa.

- É, é uma dieta restritiva por questões de saúde, não tem muito a ver com peso e tal… ai tem que evitar alguns ingr… - Esse aqui é vegetariano!! Pode pegar, tá uma delícia! - Diz você, colocando um pastel de palmito com queijo num guardanapo e me entregando.

Por que exatamente você está cuidando de mim eu não faço ideia, mas agora eu vou ter que rejeitar o famigerado pastel, quando só o que eu queria é falar sobre o podcast que eu to escutando, sobre a cor do meu cabelo, sobre a próxima viagem que eu quero fazer, sei lá, sobre qualquer coisa que não envolva meus sintomas.

Desculpa Amanda. Eu entendo, você não sabe que eu tive uma piora dos sintomas nesta última semana.

Você não sabe que eu vou ter que passar a tarde de amanhã fazendo marmita. Você não sabe no meu último passeio eu quis chorar sentindo o cheiro de cappuccino, churros e pizza. Você não sabe que eu confundo me amar e me prejudicar o tempo todo quando resolvo comer algo que quero, mas não devo. E, acima de tudo, você não sabe que não tem absolutamente nada nessa festa que eu possa consumir e ao mesmo tempo ficar em paz comigo mesma. E, sinto em lhe informar, mas hoje eu não vou poder te educar.

- Nossa, não tinha visto!! Obrigada, vou comer depois sim! - Eu respondo entusiasmada, equilibrando o guardanapo na mesma mão com a qual eu seguro meu garfo. Você fala algo que eu finjo que não escuto enquanto me levanto pra "pegar algo pra beber".


Após andar um pouco encontro um lugar pouco povoado, me encosto em um canto respirando fundo e, ao abrir meu pote, vejo alguém se aproximar de supetão, uma pessoa mais alta, olhando na direção do meu rosto e com um jeito expansivo chega, sem rodeios:

- Guria que legal o teu cabelo!! Arrasooou!

- AAaa você gostou? Mudei ele essa semana! - eu digo respondo empolgada, jogando discretamente o pastelzinho no lixo.

Fazer o que Universo: hoje em dia eu cuido melhor do que eu desperdiço em prol da interação social.

 

Isadora Beagle


Quem assina o texto é Isadora Beagle, ilustradora que lida com restrições alimentares desde os 15 anos.

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