Nas minhas idas ao supermercado eu sempre evito passar no corredor da farinha de trigo. Parece exagero para quem não conhece a doença celíaca, mas, em tempos de pandemia, talvez fique mais fácil de entender esse tipo de contaminação. As partículas de glúten presentes na farinha podem ficar suspensas no ar por até 24 horas depois de manuseadas e qualquer contato com elas pode causar reações alérgicas em um celíaco, dependendo de sua sensibilidade.
Eu descobri a doença celíaca aos 23 anos. Dez anos antes já convivia com a dificuldade em ganhar peso, enjoos constantes e dores de cabeça. Existem muitos outros sintomas e isso é o que dificulta o diagnóstico na maioria dos pacientes. No organismo celíaco o glúten faz com que as células de defesa imunológica agridam outras células. Isso causa um processo inflamatório no intestino que nos impede de absorver os nutrientes de qualquer alimento.
Desafios e convivência
Aqui no Brasil ainda não temos uma estatística oficial com o número de vítimas da doença. Isso dificulta muito a aprovação de projetos e políticas públicas de auxílio às famílias de baixa renda, que são as pessoas que mais tem dificuldade de adquirir os alimentos para manter a dieta corretamente. Como ainda não existe cura, ou tratamento, o único jeito de levar uma vida saudável é uma alimentação totalmente livre de glúten. Por conta disso é importante que tenhamos voz ativa em nosso dia a dia. Que façamos contato com os SACs das empresas e reclamações no caixa dos estabelecimentos que ainda misturam os produtos nas prateleiras.
Além, é claro, do trabalho de conscientização ao responder àquele tio que na festa da família que fala — pela vigésima vez — que “um pouquinho de glúten não faz mal”.
Há o desafio da convivência com as restrições e, além dele, o de informar as pessoas sobre a gravidade da doença. Se isso cansa? Com toda certeza, mas é necessário ter paciência, principalmente consigo mesmo nesse processo.
Parar de consumir nossos alimentos preferidos de uma hora para outra é difícil. Sentimos falta da liberdade. Experimentar algo no restaurante novo que abriu no bairro, provar o bolo de aniversário de um amigo ou entrar na cafeteria preferida para pedir um cappuccino com canela. A gente sente falta das receitas da avó nas festas de fim de ano e de sair para jantar com alguém. A ligação que o ser humano tem com o alimento é muito maior do que apenas nutrir o corpo. Mais do que o sabor, a gente sente falta das lembranças que vinham com ele.
Eu reaprendi a me alimentar. Meu paladar mudou, acostumou com novos sabores e texturas. Acostumou com a leveza que as massas têm agora, com os pães feitos em casa e com os chocolates que não são mais tão doces assim. Passei a usar ingredientes que nem sabia que existiam para recriar os sabores que guardava na memória.
Martha Rocha
Na rua XV em Curitiba fica um dos cafés mais antigos da cidade, a Confeitaria das Famílias. O lugar abriu as portas pela primeira vez em 1945. Visitei em 2017, poucos meses antes de descobrir a doença celíaca. O lugar é espaçoso, com um mezanino que permite observar as mesas estreitas do andar de baixo e um extenso balcão de vidro que abriga os bolos e tortas. É o tipo de lugar onde acertam a medida de leite no café sem precisar perguntar. Você sente como se eles te conhecessem há anos. Na hora de pedir, a atendente me contou sobre a Torta Martha Rocha, o recheio foi criado ali na confeitaria por volta de 1954, pela Dona Dair e ganhou esse nome em homenagem a uma Miss que fez muito sucesso no Brasil aquele ano. A torta feita com pão de ló, nozes e geleia de damasco acabou ficando famosa por todo o sul e sudeste do país. É uma das minhas memórias favoritas quando penso nas mudanças que precisei enfrentar. Hoje a Martha tem mais de oitenta anos e eu já não posso mais comer a torta que leva o seu nome. Quem sabe algum dia eu consiga recriar aquele sabor, se não conseguir, tudo bem, tem uma infinidade de novos sabores, logo ali, para serem descobertos.
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